quarta-feira, 10 de junho de 2015

«QUINÉ», UM HOMEM PARA TODAS AS ESTAÇÕES




















(…) Na heráldica imaginária das memórias a figura do encenador Joaquim Manuel de Oliveira, o «Quiné», do seu percurso enquanto criador teatral e lutador político, bem como as performances do grupo de teatro que criou em 1972 no Orfeão de Leiria, o GTOL (muito embora convidado desde 1964 a constituir um grupo cénico, chegando a trazer o encenador Fernando Gusmão a conferenciar no edifício histórico da Rua Latino Coelho), o GTOL, que incluía gente nova e vários dos antigos amadores do teatro na casa, constitui uma rutura epistemológica cultural, institucional e local, esse sinal de bom agoiro da lenda.
O escritor e encenador Luís Mourão recorda o contributo societário do Quiné em Leiria, enquanto ator e encenador (depois do OLCA esteve ainda no Ateneu Desportivo de Leiria, como antes passara por companhias amadoras e profissionais, também a fazer teatro), como marcante da simbologia do teatro nesta fase.
Diz ele com doçura: «A chegada, tranquila, de Quiné à cidade marca um momento decisivo de agregão e recuperão dos núcleos centrais da paupérrima vida cultural de Leiria de início dos anos 60. Do seu corpo, agigantado por uma imparável paixão pela arte de representar, retiram-se então inspirações criativas revigorantes no Teatro e no Cinema e uma geração em debandada para, fosse onde fosse fora daqui encontra, precariamente é verdade, boas razões para ficar mais um pouco. O seu contributo, coletivo, para a formação das sucessivas gerões de homens e mulheres cultos e críticos, empenhados seriamente na transformação das misérias, do inevitável, é inestimável. É-lhes cada vez mais acessível, aqui mesmo, propostas de espetáculo mais abertas e interessantes, Sean O'Casey para além de Gil Vicente ou as codias inteligentes de Eugene Labiche como exorcismo dos horrores de Armando Tavares. Se olharmos com atenção, na génese desta extraordiria transformaçã
silenciosa encontramos, com certeza, a curiosidade insaciável e o vigor operário do Quiné. Um vigor e uma curiosidade criativa que ele soube manter intactos a ao fim. Tinha, temos todos criativos, gestores, espectadores uma ideia de Teatro. O Quiné transportou a sua mesmo quando parecia natural abdicar dela. E eu, que penso Teatro de uma forma bem diversa, percebo-o muito bem. A questão central é, relativamente, simples: o Teatro, as artes cénicas ou performativas em abstrato, são tanto mais Arte quanto a sua capacidade de transformar o outro, de lhe permitir pensar um futuro mais interessante, uma nova realidade que corresponda como um mapa tatuado no corpo aos seus anseios.
Transformar o outro foi aquilo que, com uma singeleza fantástica, o Quiné soube fazer melhor. Transformar – entre a mais aguda crítica, o despertar dos mais radicais sentimentos de justiça, o encantamento e o desvario. Esta é uma história quase toda por escrever. Mas, é história de parte fundamental da vida cultural de Leiria».
Se desde os primeiros instantes outras práticas artísticas se desenvolveram no Orfeão de Leiria, em determinado momento houve necessidade de alargar ainda mais as atividades internas. O contexto político suscitado pela «Revolução dos Cravo como ficou conhecido o movimento militar que depôs o ancien regime, com o fim da censura às influências culturais e teatrais suscetíveis de minarem o status político, o lançar de peças nunca representadas, o alargamento das temáticas, o teatro assume a função de «veicular uma mensagem crítica e socialmente empenhada (), revoluciona o formalismo estético (Carvalho, C. 2004), e acompanha e protagoniza a ânsia generalizada de mudança propondo-se como agente social transformador.
Foi deste modo que o GTOL (Cabral, J. 1980; Pinto, H. 2010), levou à cena peças como: «Diário de Anne Frank» (os ensaios vêm desde antes da queda do regime), com um impacto enorme, os horrores da vioncia extrema sobre o Homem, tema, trabalhado na adaptação do texto pelo Quiné, 
reforçavam as convicções democráticas;  «O  Dispensário»,  história centrada no espaço gélido e austero de um dispensário médico da Irlanda do início do culo XX, por onde desfilam aqueles para quem a vida mais o tem para oferecer que sofrimento, dor e morte; «O Pinto Calçudo», qo bom é ter sempre qualquer coisa que nos defenda das dificuldades, que podem surgir, muitas vezes, quando menos  se esperam,  o problema das dificuldades do quotidiano; «Frei Bartolomeu dos Mártires» (obra que participou no I Encontro do Arquivo Histórico Dominicano, realizado no Mosteiro da Batalha em 1981, a convite desta entidade), da autoria do seu encenador, Joaquim Manuel de Oliveira Quiné, e posteriormente readaptada exatamente em 1983, tal como «A Viagem de Senhor Perichon», de Labiche, codia de costumes bem-humorada e contundente, entre outras. Em 1989 o Grupo de Teatro partiu para uma nova estética e estreou peças como Mário, Eu próprio, O Outro, de Jo Régio ou A Farsa de Mestre Pathelin, com a direção artística de Luís Mourão.
Bartolomeu dos Mártires, mestre na escola dominicana do Mosteiro da Batalha, a sua doutrina deu brado, proclamar a liberdade congénita de todos os homens num mundo em guerra e no cume da escravatura, ou tomar as posições  de vanguarda que assumiu como arcebispo de Braga (ele que se dizia Frei Ninguém) no Concílio de Trento, é uma personagem singular, uma personalidade cativante e motivadora de atenção ao Outro (Oliveira «Quiné», J. M. 1990).
Há pois no período imediatamente posterior a 25 de Abril, e particularmente em 1983 (ano do segundo resgate financeiro de Portugal pelo FMI) e anos seguintes, a influência marcante no GTOL de Erwin Piscator (a Acão teatral deveria instigar a mudança social), do teatro de Bertolt Brecht, e do seu «distanciament de construção e representação (ele acreditava que o teatro poderia criar um clima intelectual propício à mudança social), fazendo sentido o Teatro  Épico e Documental na vida quotidiana e em construções  cénicas como Bartolomeu dos  Mártires,  ou ainda antes  deste  período, dum realismo  de cores  fortes, inconformista, de certo modo os resquícios do ideário social das luzes como também o dos séculos XIX e XX em Portugal, o neorrealismo, a esperança na «construçã dum homem mais digno e feliz (que vem desde o pós guerra de 1945 no culo que passou).
O grande exemplo do naturalismo de Stanislavsk(antes  do seu encontro com Anton Tchekov, que o faz acrescer-lhe, mesmo se com outro fim, a revelação psicológica da personagem, o realismo psicológico), presente na encenação de Na dne (No fundo) de Gorki, «onde aquela vida miudinha que nos outros espetáculos servira apenas de pano de fundo ao drama dos protagonistas, passava para primeiro plano: cada fala nascia no e do contexto de uma pequena ão quotidiana – jogar às cartas, cozer, cozinhar em que se consumava a vida dos miseráveis retratados por Gorki ()», (Molinari, C. 2010), es presente em boa parte dos trabalhos de «Quiné» anteriores a Bartolomeu dos Mártires. Mesmo se na cidade de Leiria chegou a existir gente a trabalhar na esteira de Stanislavsky, mas a um nível mais rebuscado.
Qual o significado propriamente dito que estes espetáculos [os de Piscator] podiam ter, em que o espectador devia sentir-se fatalmente esmagado por eventos maiores do que ele e condicionado por muitas evocações (), por um determinismo férreo, é difícil de dizer. Contudo, tinham obviamente um grande valor no plano cognitivo (), bem como no plano da tomada de conscncia, na medida em que Piscator era genial ao encenar com extrema clareza o gigantesco material envolvido» (Molinari, C. 2010).
Em Portugal o teatro dito naturalista, teve sucesso em duas iniciativas profissionais na capital, no princípio do século XX, a do Teatro Livre e a do Teatro Moderno. «() Estas duas iniciativas, aplaudidas pela imprensa progressiva, atacadas pelos jornais conservadores, cuja «contiguidade ao movimento da propaganda republicana» Óscar  Lopes   acertadamente sublinhou e resultava não só da personalidade  cívica dos seus mentores e aderentes como dos temas levados à cena (que punham em causa as desigualdades  sociais, a moral e a justiça burguesas, o celibato dos padres), representaram um marco importante na evolão do nosso teatro, tanto pela revelação de novos autores, atores e encenadores, como pela afirmação polémica de uma atitude combativa frente ao marasmo da vida teatral portuguesa» (Rebello, L. F. 2000). Mas lograram também uma notável influência.
Afinal, é nos dramas didáticos que «Brecht dá os exemplos mais claros daquilo que entendia por teatro político: um instrumento de conhecimento dialético (). Os dramas didáticos não são  tão úteis  aos  espectadores  quanto aos  autores  que, adotando uma postura ativa e consciente diante dum dado problema, conseguem apreender os seus termos efetivos  e indicar as suas  posveis soluções  que não são  necessariamente  as  do autor (Molinari, C. 2010).
«Quiné», um autodidata, ao ter a capacidade de trabalhar tanto o naturalismo (o de origem lusa no dealbar do culo XX, como o da influência do Stanislavsky da primeira fase), o neorrealismo ou o teatro político (inspiração de Piscator e Brecht), numa íntima relação com o diferente, qual celebração da heterogeneidade, é em sentido filosófico um pós-moderno precoce, e o resultado deste seu labor identifica a sua produção mais tardia no OLCA como eminentemente pós-moderna ou prefigurando já o pós-modernismo.
E as sociabilidades geradas pelo teatro de tal raiz no seio do associativismo, meio onde tinha um pendor catalisador e veiculador, estimulavam um saudável sentido transformador. Mas pode ainda dizer-se que este «realismo de larga implicação socia (Cruz, D. I. 2001) ou a tradição de «drama de atualidad ou «drama socia, caracterizado por uma estética realista-naturalista, de temática social, aperfeiçoada ao longo do século XX, e em especial depois de Abril de 1974, é «um bom exemplo da evolução modernista que este realismo de cariz social sofreu» (Carvalho, C. 2004).
Leiria 2011
Henrique Pinto
In Do Estado Novo ao Pós-modernismo Cultural





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