segunda-feira, 30 de novembro de 2009

PARA UMA LEITURA GEOGRÁFICA DAS TERRAS DO REI TROVADOR

Apresentação
Testemunhos diversos atestam uma presença humana antiga em diversos locais do território entre as bacias hidrográficas do Tejo e do Mondego. Factores de natureza geográfica e sobretudo de natureza histórica, relacionados com a ocupação humana desta faixa litoral, identificam-na como uma área de transição entre civilizações distintas: a atlântica, mais setentrional e a mediterrânica, a sul, separadas por traços climáticos e culturais diferenciados. A área do Pinhal Litoral, dominada pelo centro urbano de Leiria, encontra-se nos limites setentrionais deste vasto território que podemos identificar com a Estremadura Setentrional. No seu conjunto esta apresenta algumas singularidades que resultam, quer do processo histórico do povoamento desde a época da Reconquista quer de processos modernos e contemporâneos relacionados com o desenvolvimento local e regional, que ditaram a construção de uma rede de povoamento rural e urbano, alicerçada em actividades diferenciadas da sua população.
Esta a vasta região da Estremadura, que mereceu a atenção de outros poetas e prosadores, tais como Miguel Torga (“Portugal”), que sobre ela escreveu:
Terra onde a História não quis morrer, a Estremadura é no corpo de Portugal a figuração da sua própria alma. Na ondulação do grande Pinhal do Rei, no marulhar das ondas da Nazaré, na ressonância dos passos que percorrem a nave de Alcobaça, no silêncio contido da batalha, na intimidade do baixo-relevo de Atouguia, na melancolia castelã de Porto de Mós, na graça triangular e cintada de Óbidos ou no sorriso aberto dos horizontes de Palmela, há qualquer coisa de imponderável e profundo que está para além da simples corografia orgânica. Um ázimo pão sobrenatural mora nesses sacrários que a Charola de Tomar sintetiza. E porque foram os artistas os concretizadores e os teólogos da transcendência, é que o jardim nacional dos criadores deveria estender-se do Mondego até ao Sado”.
Esta descrição é justificada pela persistência de diversas marcas humanas, fruto das relações entre o homem e o seu meio ambiente, ainda visíveis na “expressão das relações entre o homem e a terra, resultante, por um lado, das condições naturais e por outro, da forma de colonização, modos de vida, sistema de exploração
(…) (Ribeiro, “Portugal”, 1955, 194), e traduzidas no crescimento, distribuição e actividades dos seus habitantes.
De facto, o conhecimento dos processos de ocupação do espaço pela população e das características da repartição e da ocupação do território pelos seus habitantes, ao longo da história e no tempo actual, é um processo complexo, designado por “povoamento”, tal foi anteriormente assinalado. Trata-se de um conceito já defendido por L. Vasconcelos que na sua “Etnografia Portuguesa” (1980.II, 256) define “povoamento”, como sendo o “estudo da origem remota ou recente das povoações que constituem Portugal (Continente, e Ilhas Adjacentes)”. Note-se que a própria designação do território evoca esse processo histórico de ocupação humana e a acção de diferentes agentes que contribuíram para o arroteamento da terra e para a fixação da actividade humana a sul da linha do Mondego.

Sobre o Rei Trovador
Vejamos alguns aspectos que permitem a caracterização desta terra habitada por D. Dinis, o rei Lavrador. A sua evocação tem em conta duas razões, ambas de incidência regional:
- a primeira, ditada por razões históricas e geográficas relacionadas com a actividade de povoamento, de fomento económico, de criação literária e de desenvolvimento cultural levadas a cabo por este monarca na área geográfica de Leiria;
- a segunda, a associação deste monarca à vida, à obra e aos valores cultivados pela Rainha D. Isabel de Aragão, cujos feitos em prol da paz e do bem ao próximo perduram no imaginário colectivo dos habitantes desta região. Uma memória alargada aos feitos do seu esposo expressa, por exemplo, na seguinte máxima popular: “El Rei D. Dinis, fez tudo quanto quiz”. Assim se refere ao monarca, o poeta Luís de Camões:

Eis despois vem Dinis, que bem parece
Do bravo Afonso estirpe nobre e digna,
Com quem a fama grande se escurece
Da liberalidade Alexandrina.
Com este o Reino próspero florece
(Alcançada já a paz áurea, divina)
Em constituições, leis e costumes,
Na terra já tranquila claros lumes.

Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
O valeroso ofício de Minerva;
E de Helicona as Musas fez passar-se
A pisar de Mondego a fértil erva
(…)

Nobres vilas de novo edificou,
Fortalezas, castelos mui seguros,
E quasi o Reino todo reformou
Com edifícios grandes e altos muros;
Mas, despois que a dura Átropos cortou
O fio dos seus dias já maduros
Ficou-lhe o filho, pouco obediente
Quarto Afonso, mas forte e excelente”

“Os Lusíadas”, Canto III

Não se pretende construir uma biografia do monarca D. Dinis. Assinalamos apenas os aspectos mais relevantes da sua vida. Nascido em Santarém, filho de D. Afonso II e de D. Beatriz de Castela, em 1261, D. Dinis subiu ao trono em 1279, que ocupou até à sua morte, em 1325. Do seu longo reinado, de 46 anos, sobressai a assinatura do Tratado de Alcanizes, com Castela, em 1297, que fixou os limites definitivos da fronteira entre Portugal e este Reino. Realça-se ainda a actividade desenvolvida em prol do reforço da sua autoridade régia e a sua acção, junto da Santa Sé, conseguindo que a Ordem dos Templários viesse a dar lugar à Ordem de Cristo (1315), cuja acção se veio a fazer sentir por alguns séculos.
Quanto à sua vasta acção governativa, destaca-se o fomento que deu ao povoamento do reino através da fundação de povoas marítimas e da criação de feiras; o incentivo ao desenvolvimento da marinha, ao comércio marítimo e à exportação de produtos agrícolas para o norte da Europa; o fomento à agricultura e à florestação do território. A drenagem da bacia do Lis (paul de Ulmar) e a plantação do pinhal de Leiria foram obras incentivadas pelo “Rei Lavrador” (que fez longas permanências nesta cidade), cujos reflexos na economia regional ainda hoje perduram. Da mesma forma persistem vestígios das obras realizadas no castelo de Leiria com particular destaque para a sua torre de menagem e para o paço da Rainha Santa, na sequência da doação que D. Dinis fez de Leiria a sua mulher.
A sua intervenção nos domínios cultural e literário ficou assinalada pela criação da primeira Universidade em Portugal, o “General Studium”, em diploma assinado na cidade de Leiria, em 1 de Março de 1290. Igualmente conhecida é a sua actividade literária testemunhada pela diversidade das composições poéticas, sobretudo cantigas de amor e cantigas de amigo, que nos deixou. Destas, destacamos a que enleva as belezas da região:

“Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
Se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
Aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
Aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?
(…)

Nota final
Os aspectos evocados são alguns dos que permitem analisar esta área como o legado de um “complexo histórico-geográfico” no sentido em que V. Magalhães Godinho (1976) definiu ou seja, como um “um apetrechamento técnico determinado; (…) um conjunto de relações sociais (…); um espírito que norteia e motiva o comportamento dos membros dessa sociedade”. Bom seria que as condições ideais que identificam os sistemas sociais e humanos e o legado histórico desse monarca que hoje evocamos, pudessem servir de mote para uma acção mais profunda e envolvente que nos ajudasse a fortalecer e desenvolver nas suas múltiplas facetas, este complexo territorial e cultural, que hoje nos honramos de habitar. Nesse sentido são bem-vindas as iniciativas desenvolvidas por todas as entidades, tais como o Orfeão de Leiria, com a sua já centenária tradição em prol da cultura, da música e das letras, já glosadas pelo nosso rei Trovador e assim evocadas por Fernando Pessoa (Mensagem):

“Sexto Castelo – D. Dinis
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio murmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem, e puro,
Busca o Oceano por achar:
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar”.

Jorge Carvalho Arroteia
21 de Novembro 09
Oração de Sapiência na Abertura Solene do Ano Lectivo do Orfeão de Leiria Conservatório de Artes, pelo Professor Doutor Jorge Carvalho Arroteia, catedrático da Universidade de Aveiro, transcrita com a devida vénia

FOTOS:Gonçalo Lopes; Adelaide Pinho; Henrique Pinto e Jorge Arroteia; Gonçalo Lopes; Jorge Arroteia e Henrique Pinto (autor Sérgio Claro)

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