domingo, 8 de novembro de 2009

VITÓRIA SUADA

Lisboa! O nome da cidade queda-se solitário no ecrã do portátil. Qual o timbre de Sónia Tavares, estímulo que o cérebro do seu querer mais desejou por meses transformar em energia motora, vital, criadora.
A conferência no Santa Luzia estava a acabar. Ao princípio da noite pusera ao corrente os seus ouvintes. A todo o instante findaria a reunião do board. Saber-se-ia o veredicto?
O sorriso mais aberto antecipou a mensagem. «Ganhámos!», toque grave de trompa alpina, em uníssono, assistência feliz.
Manuel fez o regresso sem velocidades eufóricas. Na estrada informou em primeira mão apenas três dos amigos. Embrenhou-se no reticulo da memória. Deixou que o rosto tombasse no calor macio das mulheres, daquelas a quem guarda sabor do perfume, o perfume de todos os amores. Prenderam-se-lhe imagens nalguns espinhos. O armazém do pensamento, misterioso, surpreende sem anúncio. Guia o BMW a voz sensual de Lura, reflexo impresso no córtex cerebral, estereótipo. A cabeça desenrola-lhe acontecimentos fugazes, cascata sem nexo nem dor.
Salta sobre cadáveres putrefactos, folhagem empapada em sangue, ruas inteiras, ambiente de náusea, quatro rodas motrizes voam para Kano por veredas que só o nativo conhece, a ONU ordena evacuar imediato a todas as campanhas humanitárias, o avião nigeriano deve esperar. Estivera em Kabul, Luanda, Ramallah, Islamabad, Uttar Pradesh, igual o propósito e nada se assemelha.
Doutor Roger apresenta-lhe a neta no aeroporto, sabe-se lá a intenção, feminilidade genuína, rara, exuberante, bela «arabinha», traços libaneses, ares de Mónica Belluchi ou Hall Berry de cores pálidas, palavras como só Juliette Binoche, tímida, aerofóbica, culta, sabedora de troços importantes da história, apaixonada por Paris…Vermeer.
Os rebeldes provocam o ditador, outra vez ainda a autonomia na agenda da contenda civil, véspera de eleição local, coisa assim só nas crónicas de Adelino Gomes. A poliomielite, vacinas por aplicar, países vizinhos incrédulos, infectados, milhões de dólares da comunidade internacional gastos em vão, intolerância, o mesmo tique ignaro de Mbecky (mas este teve a bênção de Mandela, era um democrata), miúdos estropiados, muçulmanos a receberem ónus público, a versão ingrata e injusta conhecida mundo fora. No metro para Victoria Station ocorreram-lhe as palavras de Savimbi para Giay. «Nós tratamos das nossas crianças!», dissera pelo rádio.
O isco pegou. Coube a outros o seguimento. A candidatura, excelente, apimentada por as mais importantes capitais disputarem a corrida, estilizou-se. Em Zurique um guru famoso deita-lhe à cara, «a Lisboa só irão pretos». Comprometera-se em rogar audiência do «primeiro», o amigo. Recebido em São Bento, portador da comenda de Washington, o caminho era agora franqueável.
A história zamizdat é bem diversa. Uns telefonemas de Stanley Ho logram o impossível. E enchem agora a boca…Afinal tudo não passou do afã duma funcionária nos states… lembrou-se de Portugal, «talvez eles sejam capazes!». Um pouco como os spots da TV, suor e empenho de Manuel. Foi descobri-los lá fora, feito de outrem. A «grande família» é desde sempre vítima mansa destas vaidades ocas de falinha branda, um novo colonialismo, incompetência endinheirada, cheiro bafiento a casinos do mundo.
Foi como se Lisboa visse de novo chegarem as caravelas do oriente.
Paixão tumultuosa, de arrasar, filhos lindos, o estai da proa a dar de si na volta do Espichel, vela enrodilhada em novas fobias, internamentos, distância fustigada pela doença, refúgio no aconchegado amor de sempre, a felicidade, a vida como presente. Manuel conhecia o executivo por inteiro, toda a palavra soaria a excesso, diziam-lhe amistosos, um a um, em qualquer volta do planeta, «lá iremos a Lisboa». E tanto bastava para saber, na altura certa o voto deles contaria. A malária contraiu-a na Zâmbia, das prostatites, troféus de tanta viagem, oito voltas ao mundo em oito anos, sobrou-lhe o costume, o coração avisa solene e duro, a universidade pede, a «estrutura» exige, a cultura impõe-lho. Tem tempo para tudo, de nada abdica. Agora o relógio é selectivo. Contraria-o. Manuel «mata-se» nos ofícios, workaolic, já nem liga, pôs de parte boa dose do social. Usurpe os louros quem deles tiver precisão.
Henrique Pinto
Novembro 09
FOTOS: Lisboa vista do Tejo; a actriz Hall Berry

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