sábado, 5 de dezembro de 2009

MIGUEL SOUSA TAVARES, VENHA DAÍ!

O não querer cair no desagrado de boas amigas levou-me a, ainda desdenhoso, aderir ao face book. Estilo de vida é fluido fetal agradável, preenche os poros, sedutor, pegajoso mesmo. O meu adapta-se como borbulhas no corpo a este modelo de comunicação. Mesmo se gosto imenso da conversa saborosa, tanto como da chanfana ou da sardinha assada. Quando iniciei o ministrar deste meu ofício de João Semana o tempo minguou como o personagem dos perfumes de Suskind, escrita e leitura sustidas no balanço das ondas, e, prazer de antes, hábito de fervorosas tertúlias, o café como templo esvaiu-se qual miragem.
Todavia, num ápice vi os rostos já sumidos na memória e os que beijei ontem em Nova Iorque e Istambul, lugares míticos, fabulosos. Acenavam-me sorridentes.
E quase tropecei em conversas demoradas de estudante, anos 60-70, conceitos e sonhos à deriva. Noutro dia no Centro Cultural da Praia contemporâneos de Coimbra entretinham-se no diálogo redondo sobre o crioulo e o português, como faziam no Moçambique ou no Tropical. Mais do que a paragem no tempo é saudável espírito irrequieto e jovem, sequioso, em porfia.
A propósito de textos publicados neste blogue logo caiu chuva miudinha, curiosidade e discórdia sibilinas, mérito e discriminação como absolutos. Uma vez na América, dei a dianteira a uma senhora desconhecida, por educada deferência, e ela, mesmo aceitando o gesto lançou-me sem sorrir, quase rude, «as mulheres não querem ser descriminadas negativamente…nem positivamente».
Julgo que o termo mérito, como ética, não muda muito no significado desde Aristóteles, ainda se usado discricionariamente. A discriminação tem um sentido histórico classista, preconceituoso. Aduzia-me uma companheira deste cruzeiro tecnológico, «como é possível ela subsistir no século XXI?».
Uma das tarefas a que me devoto na minha praxis de rotário, sem paragens nem canseiras, é o ofício de pugnar pelo fim da iliteracia, moléstia transversa nas sociedades, tanto mais branda quanto maior o grau de promoção activa do saber ao longo da vida. Numa cultura sem nuances de fractura, como a centro europeia, ela é mero fenómeno lateral. Acompanha o lastro social da literacia e da minoração dos abismos salariais.
Sabemos quão árduo é convencer alguém dos propósitos meritórios duma medida social. E damo-nos conta da ligeireza com que medram patranhas e mentirolas, sobretudo quando são mecha embebida em pequenas verdades em combustão. Temos a convicção que a graduação universitária pode acrescer pouco à cultura. Abel Salazar foi mais além no escanhoar desta incongruência, sabiamente, «o médico que só sabe medicina nem medicina sabe».
O preconceito, irmão gémeo da descriminação, pode mesmo assim vingar nas frestas do crescimento social, como as madrassas de cada credo. Compreende-se bem que as igrejas se esforcem por manter incólume o vértice dos princípios, de apuramento civilizacional. Sobretudo quando não atentam contra a ciência feita prova. Num destes dias um eminente jurista português dizia estar de acordo com o repto dos bispos portugueses ao referendo em torno do casamento entre homosexuais. Por mim tanto se me dá. Estou firmemente convicto, seja qual for o governo que sancione esse princípio na lei, deita por terra um argumento recorrente de rupturas. Só que aquele inspirador pátrio explicava a anuência por se tratar «dum problema de consciência». Então, pôr o país a referendar um «problema de consciência não o incomoda»? Não é um modo de oficializar a descriminação e o preconceito?
Sente-se no ar o cheiro pútrido da justiça em Portugal quase como o dialecto sulfúreo dos cabos corporativos do intrincado judiciário, em cena na praça. Como se para além de arvorados comediantes não fossem ainda maus fautores do quotidiano que os sustenta. Cabe aos melhores entre pares sobressaírem no exemplo, criando paradigma no somatório das obras. É também o poeirento dilema da mulher de César que o dita.
Conheci o Louçã era ele ainda um adolescente. Parecia-nos já tão erudito como hoje, brilhante. Não me revejo na postura e propósitos políticos tão exaustivamente por ele ostentados. Contudo, foi grande e notável o ensinamento colhido ao aparecer-me na lista de quem adere ou quer aderir a um grupo de amigos na rede. Ele tem amplos milhares de acompanhantes.
Berlusconi sentiu o desdém de centenas de milhar de patricios convocados em cima da hora por blogues e redes sociais.
Perante uma informação generalista discricionária, catastrofista, envelhecida, o endeusamento de novelas, crimes e futebol abjurado pelos mais literatos, há um escopro soberbo de oportunidades no fluir boas intenções (e as más também, infelizmente) através destas redes. O espectro dos fãs é lato mas já em si circunscrito, porventura com uma abertura ao conhecimento de maior substância. Por isso mesmo, manifestamente, não se lhe pode virar costas. É um universo à beira de novo big bang. Creio que Miguel Sousa Tavares prestaria um serviço ainda mais sólido aos portugueses se reformulasse a sua atitude de desprezo por este mundo imenso de consumidores da boa explicação, fazendo das suas análises gostoso alimento do sistema. Venha daí.
Henrique Pinto
Dezembro 09
FOTOS: Miguel Sousa Tavares e Maitê Proença; Henrique Pinto em Teresópolis, na casa de Santos Drumond (Foto Graça)

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