sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A LARANJA MECÂNICA


Dentro de poucos anos a população do mundo viverá sobremaneira na cidade. O campo, visão bucólica de Júlio Diniz ou Malhoa, já não será o refúgio para os jovens susceptíveis de serem corrompidos pela urbe, como defenderia Rousseau no seu Contrato social. A cidade, universo que nasceu na Suméria há pouco menos de dez mil anos, uma gota no oceano do tempo cósmico, com tantos contratempos e não menos entusiasmos que o declínio ou a euforia civilizacionais lhe introduziram, será o pote dum caldo de cultura cada vez mais complexo e rico.
Falar de cidade é ter em conta as pessoas, a convivência, o ser mais ou menos interiorizado o sentido de vizinhança.
O europeu comum como o sul-americano, ainda que cada vez mais perfumados no seu dia a dia pelos eflúvios das culturas americanas, olha de esguelha também com mais frequência o americano comum. Todavia, com uma história breve em demasia enquanto país, de contrastes de toda a ordem, provavelmente com as taxas mais incríveis de deserdados da sorte e milhões de pessoas que passam fome, dum calvinismo e individualismo sonantes, o cidadão americano tem ainda assim um sentido de comunidade, de vizinhança, de pertença, como de forma alguma tem quem dele mais desdenha.
No estudo que Roberto Carneiro dirige desde 1998 a perspectivar um modelo de educação para Portugal com a meta em 2020, para lograr resultados tangíveis, a ideia de cidade, de comunidade, está presa pelo cordão ao rumo a tomar, ao modelo económico e político que lhe subjaz.
O futuro tenebroso, violento e monótono de A Laranja Mecânica, o filme de Kubrik que é um ícone da minha geração, e que eu vi em Roma quando ainda não fruíamos a liberdade de o apreciar, pode configurar o ensino que vivemos com os nossos filhos, útero fecundo de desempregados, de pessoas sem perspectivas, feito à medida do taylorismo industrial decadente, e contunde com um mundo onde a inovação induz competitividade e riqueza.
Se queremos chegar a 2020 a ombrear com os que mais apostam na formação dos seus cidadãos de todas as gerações, a Dinamarca, a Finlândia e a Holanda – porque eles não esperam por nós está-nos por igual condenado parar para aprender –, é curial que esta geração de poder tenha em conta a pressa de romper com o passadismo educativo, com o tom obsoleto de fazer política.
Um propósito assim implica adestrar mais de cinco milhões de cidadãos com competências para saber fazer e fazer sabendo. É uma outra formação, que não nivela, atenta às diferenças e ao mobilizar capacidades diversas. Todos nascemos com um potencial ganhador de aptidões que nos habituámos a deixar esvair-se.

Henrique Pinto
In Até o Diabo Tem as Malas Feitas, edição MinervaCoimbra

Foto: Roberto Carneiro

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