domingo, 6 de setembro de 2009

A DANAÇÃO DOS CORPOS


É ritual orgíaco e de fecundidade. Pensamento mais censório olha-o de través. «No Carnaval ninguém leva a mal», expressão antiga no sentido, radica-se nos louvores a Baco e a Vénus, em embustes e disfarces sexuais. Há provocação sensual no ritmo afrodisíaco dos corpos.
Em história não há ses. Todavia, pode-se especular em termos de probabilidades. Não fora coincidir o herói resistente Amílcar Cabral ser parido de gente cabo-verdiana com o partido independentista ser comum a Cabo Verde e Guiné, aquele arquipélago seria ainda território português, com autonomia semelhante à da Madeira e Açores. É sentimento vivo nos mais cultos. Vencida a diáspora ou o ciclo de pobreza, os mais novos estudam em Cuba, no Brasil, em Lisboa. Mais estruturam um povo erudito e voluntarioso.
As costas da Guiné, Senegal, S. Tomé e tantos outros ancoradouros, deram ventres e sémen ao colonizar do Brasil, Antilhas, América. O povo de Cabo Verde, avesso à escravidão quanto provido da agilidade dos sábios, resistiu mais do que outros à mercantil sangria. E talvez só Cuba – igual prisioneira do oceano – e o sertão de Mato Grosso ou o norte amazónico, isolados por floresta, água e doença, tenham gerado povos de musicalidade tão exuberante e nostálgica como o de Cabo Verde. Duma mesma e imensa sensualidade, Cesária Évora, Tito Paris, Quim Alves ou Lura são nomes queridos no mundo.
O porto de São Vicente não é Guanabara. Porém, comovem minudências comuns da criação. E a frescura da mente ou a danação do corpo parecem-se tanto nos seus Carnavais, poemas à beleza e ao ser natural não tolhido por dogmas de crença ou de salvívica modernidade.
Mais que o eros freado disfarces encobrem amiúde violência física e moral, fealdade vergonhosa, sorriso improvável, opróbrio. Aos onze ou doze anos de idade a gravidez provoca horrendas fístulas, da bexiga ao útero. Os navios hospital apoiados por Rotary International e agências do planeta, correm agora a Libéria, acostarão logo a Cabo Verde. As equipas de cirurgia, voluntárias, operaram em 2006 mais de três mil daquelas jovens do continente africano, prenhes forçadas pelos seus donos. Reconstituem o rosto a jovens com lábio leporino, ruptura do véu do palato e tumores benignos de soberba deformidade, que fazem deles monstros párias aos olhos das vizinhanças. Ao fazê-lo oferecem vontade de sorrir, gosto pela vida e auto-estima a dezenas de milhar de pessoas em cada ano. Reverso da medalha do Carnaval, preiteiam como ele a felicidade duradoura.

Hpinto
Setembro 09

In Diário de Leiria (adaptação)

FOTO: Tito Paris

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