terça-feira, 8 de setembro de 2009

MÃOS QUE RIEM MÃOS QUE GRITAM


Fui caloiro com Manuel Antunes – dos poucos grandes artífices da cirurgia cardíaca mundial –, ele nos estudos gerais de Lourenço Marques, eu na faculdade de medicina de Lisboa, no ano dourado do transplante cardíaco, graças ao jovem professor sul-africano Chris Barnard, num instante ídolo dos aspirantes à arte médica e do cidadão anónimo.
A época era de opressão de consciências. O episódio realçou o não nos podermos limitar a olhar a própria vida quando falamos da vida e do bem-estar, mas também a dos outros.
Nas aulas de biologia médica vi Barnard no cadafalso, a condenação científica em cima do seu sucesso. Ainda interiorizo essa diatribe, mentalmente ultrapassada, como um desincentivo enorme para quem começa uma aventura difícil, o ferrete dum conservadorismo intelectual absurdo num grau de ensino avançado.
A instituição mundial corporativa da cardiologia editou um livro evocativo da morte daquele pioneiro. Com o gosto e a saudade de ter privado e aprendido com ele, como seu discípulo, o professor Manuel Antunes elogia-lhe nessas páginas o imenso respeito pelos outros, a simpatia pessoal, o entusiasmo que suscitou nos jovens médicos, e, sobretudo, a ousadia de avançar onde ainda havia dúvidas quanto a vários mecanismos biológicos, tendo com tal atitude prolongado vidas, mas, sobretudo, aberto uma janela da ciência. Um acto doutra forma postergado por muitos anos.
As mãos inspiradas por Barnard riem agora na vida saudável doada a milhares de pessoas já escolhidas pela negra megera. Tal e qual as de Artur Pizarro – que estudou piano desde os cinco anos –, ou as de Miquel Bernat sobre as lâminas da marimba, a deleitarem mente e sentidos de quem as ouve.
A escola Afonso Lopes Vieira, referência no ensino regular de surdos, fez um notável espectáculo onde a emoção da poesia, lida por mãos gritantes a traduzirem sentimentos, tocou fundo os ouvintes. A escrita dum dos alunos, «Tu ouves o som do riso/Eu vejo uma face sorridente (…), «A tua língua são palavras que se falam/A minha língua são os gestos», reforça-nos a convicção de que a comunidade só é plena de significado no somatório do diverso.
A força mobilizadora de mãos que cantam e gritam nos microcosmos da vida, a sala de aula, a operatória, a de concerto, a da existência humana, transcende-nos na capacidade de persistir para além da inibição medíocre e por cima da indiferença egoísta. O poeta/actor Fernando Ribeiro, vocalista dos heavy metal Moonspell, na metáfora «(…) o ser humano tem de ter essa arrogância, querer ser mais do que um joguete, não só de Deus, mas também da sociedade», sintetiza o imperativo de o homem se superar a si próprio face a todo o estigma na sua realização como entidade inteligente, amante, livre, sensível, tolerante, esteta, diferente, audaz, solidária, construtora de pontes e sinfonias.

Hpinto

In Diário de Leiria, 2009

FOTO: o colega e amigo Professor Doutor Manuel Antunes

Sem comentários:

Enviar um comentário