terça-feira, 8 de setembro de 2009

O PAÍS DE BELARMINO


Há conceitos disparatados que só a golpes de inteligência, tempo e constatação refluem das cabeças. Quem estudou história pelo manual de Mattoso levou tempo, se o conseguiu, a não ter os espanhóis por inimigos. O aforismo popular dizia mesmo que «de Espanha nem bom vento nem bom casamento». A democracia, a juventude e a globalização mudaram o quadro.
Durante anos Luís Buñuel foi dos poucos grandes artistas modernos espanhóis não situacionistas cujo trabalho pôde ser visto em Portugal, mas já na chamada «primavera» marcelista». Las Hurdes, terra sem pão, de 1932, foi a minha primeira incursão na sua obra. Se fosse vivo ele teria completado cem anos em Fevereiro de 2008. A mesma cifra que, como augurámos, o grande artista Manoel de Oliveira, superou em Dezembro. Aquele documentário é o retrato cruento, doloroso mesmo, dum país paupérrimo, ainda longe da guerra civil, a contrastar em absoluto com os dias de hoje. Espanha está na moda, por muito mais que o futebol, o turismo, as mulheres, a economia, a música, a alegria da noite bem vivida ou a língua. Dizem os jornais, até o gay «mais bonito» é espanhol. O país aflorou da miséria então partilhada com a nossa para ser a décima potência mundial. Em democracia sempre foi bem governado, à direita e à esquerda.
Era menino quando numa retrospectiva me emocionei com a vida simples de outros meninos das ruas do Porto, do filme de Oliveira, Aniki-Bóbó (1942). A sua primeira obra-prima, Douro, Faina Fluvial (1931), um documentário sobre a vida nas margens do rio, tão espantoso como o de Buñuel, foi um fracasso comercial, indutor do seu afastamento temporário do cinema. O labor de ambos os cineastas, recriando quais poetas a beleza das coisas tristes, veio a mostrar-nos que a força do neo-realismo, estrutura de pensamento artístico posterior, com a mesma carga impressiva e dura, pré-existiu à patine da homogénea ideologia do seu contexto.
O Café Baía em Cascais era nos anos sessenta local de namoro, ponto de encontro dos adolescentes da imensa área até Lisboa. Funcionava ainda como tertúlia de comerciantes e empregados, jogadores de futebol e de hóquei patinado, pintores, intelectuais, situacionistas e opositores. Pides e gigolôs tinham também ali o seu poiso. Um homem simples, inteligente, falador sem reservas, a bondade em pessoa como não conheci outro, Belarmino Fragoso, antigo pugilista famoso, era o engraxador de serviço. Inspirado na sua vida Fernando Lopes realizou o filme Belarmino. Obra neo-realista, dá-nos a cor da situação social explosiva daqueles anos de existências tolhidas. A personagem é o antigo campeão com os seus momentos de glória, explorado pelo capital, vivendo de memórias.
Portugal é agora um país moderno, com os problemas inerentes à sua história. Espanha é parceiro e o melhor cliente.

Hpinto

In Diário de Leiria, 2009

FOTO: Catherine Deneuve e Michel Picoli em Belle de Jour, de Luis Buñuel, 1967, segundo o livro de Joseph Kossel

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